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O Pacote do Veneno: artigo do 'Cadernos' debate o projeto de lei sobre os agrotóxicos

"Passados quase trinta anos da Lei dos Agrotóxicos, idade semelhante à da chamada Constituição Cidadã de 1988 e das Leis Orgânicas de Saúde aprovadas em 1990 que regulamentaram o Sistema Único de Saúde (SUS), vivemos um retrocesso civilizatório." Assim se refere o pesquisador Marcelo Firpo ao Projeto de Lei (PL) nº 6.299/2002, denominado de Pacote do Veneno, em seu artigo publicado no Cadernos de Saúde Pública. Para ele, o Brasil, líder do ranking mundial de consumo dos produtos, caminha na direção contrária a vários países do planeta com maior consciência ecológica e sanitária onde tem havido redução dos agrotóxicos no consumo global e por área plantada, consumindo alimentos orgânicos e agroecológicos, sem diminuir a produtividade e os ganhos econômicos.

Firpo explicou que o PL 6.299 assume a primazia dos interesses econômicos do agronegócio no lugar da defesa da saúde e do meio ambiente, a começar pela substituição do conceito de agrotóxico pelo de “produtos fitossanitários”. O PL ainda retira da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) diversas atribuições no processo de licenciamento, ampliando os poderes regulatórios do Ministério da Agricultura.

O tema dos agrotóxicos ganhou destaque nacional desde 2008, quando foi divulgado que o Brasil havia se tornado o líder do ranking mundial de consumo. Em 2011, foi criada a Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida, que reuniu inúmeros movimentos sociais e sindicais, ONGs, universidades e instituições de pesquisa. No mesmo ano, houve o lançamento do filme O Veneno está na Mesa, do cineasta Silvio Tendler, e, em 2015, foi publicado o livro Dossiê Abrasco: Um Alerta Sobre os Impactos dos Agrotóxicos

Como o país passou a consumir tanto agrotóxico e, mesmo assim, caminha para aprovar majoritariamente uma legislação tão retrógrada? Segundo Firpo, ao buscar por respostas, chega-se ao âmago das crises social, ecológica e de saúde, que fazem parte de uma crise mais ampla, civilizatória.

No caso dos agrotóxicos, ele explica que o elo com a crise mais ampla tem a ver com o modelo de desenvolvimento dos países neo-extrativistas do Sul Global exportadores de commodities agrícolas e metálicas. Já no caso do agronegócio, continua o pesquisador, monocultivos de exportação como a soja explicam a dependência química, inevitável em sistemas ecológicos homogêneos que concentram a produção mundial de alimentos a poucas espécies vegetais e animais, com mercados longos que distanciam e alienam os consumidores.”A agricultura industrial trava uma guerra contra a natureza e a biodiversidade vira uma praga a ser destruída.”

O artigo de Firpo ainda esclarece que existem pelo menos três opções estratégicas de expansão do agronegócio no contexto brasileiro. A primeira é a incorporação e subordinação dos agricultores familiares à cadeia do agronegócio, inclusive para enfraquecer a reforma agrária e movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A segunda estratégia é o aumento da área plantada por meio da retirada das terras indígenas, quilombolas ou daquelas protegidas pela legislação ambiental. Uma terceira estratégia diz respeito ao aumento da produtividade da área plantada. 

Firpo lembrou que os monocultivos são dependentes químicos dos agrotóxicos, pois a agricultura industrial precisa eliminar a biodiversidade para plantar ou criar uma única espécie. “Trata-se da ciência do controle para dominar, e não do convívio para o bem viver, princípio básico dos povos que vivem da e em harmonia com a natureza. Para eles, a noção de bens comuns é componente integrante de suas cosmovisões, economias e saberes.”

O artigo conclui que a Saúde Coletiva precisa se reinventar para enfrentar tamanhos desafios. O autor questiona até que ponto os venenos e os conflitos de interesse estão a corroer nossos princípios e práticas, mesmo porque, muitas vezes, não são explicitados por exigências pragmáticas de coalizões políticas e financiamento de instituições, grupos acadêmicos e ONGs. “Responder tais questões é uma tarefa premente das forças progressistas e dos intelectuais que buscam um pensar-sentir mais ético e integrado de origem andina, que concorre com as visões rasteiras e produtivistas que predominam na academia, inclusive dentro da própria Saúde Coletiva”, finalizou.

O artigo O trágico Pacote do Veneno: lições para a sociedade e a Saúde Coletiva foi publicado no Cadernos de Saúde Pública n° 34, de julho de 2018.