Você está aqui
Determinação Social da Saúde e Reforma Sanitária
Abas primárias
Relacionados
- 1 de 3
- próximo ›
Repensando a determinação social da saúde
Ao patrocinar o seminário que deu origem aos artigos reunidos nesta coletânea, realizado em Salvador, em 19 e 20 de março de 2010, o Centro de Estudos Brasileiros de Saúde (Cebes) se propôs a repensar a determinação social da saúde, conceito que teve notória importância na formação da epidemiologia social latino-americana e na história do movimento sanitário brasileiro.
Em 2008, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou informe sobre o tema, o qual, nos países filiados a essa entidade de cooperação multilateral, foi antecedido e sucedido por uma voga de estudos acerca dos chamados ‘determinantes sociais das doenças’. Mas o conceito de determinantes sociais, ao ser vulgarizado sob tal chancela oficial, reaparece nitidamente desprovido do peso teórico e político que assumira nos anos 1970 e 1980, quando se pretendia entendê-lo à luz da teoria marxista da sociedade. Com efeito, o que é apresentado sob esse rótulo consiste, em grande parte, em casos mais ou menos óbvios de causalidade social dos problemas de saúde. Por exemplo, demonstra-se com boas estatísticas que as famílias de baixa renda têm mortalidade infantil mais alta que os demais estratos da população; ou que os trabalhadores desempregados, em comparação aos empregados, são mais suscetíveis a episódios de depressão e a outros transtornos mentais.
Por outro lado, a doença continua a ser entendida como um evento clínico-biológico, enquanto suas causas são consideradas fatores sociais isolados, portanto, sem que estejam fundadas em qualquer teoria da sociedade. Avalia-se o acesso a serviços de saúde, mas nada se diz acerca da iatrogenia médica, ou seja, que a prática da medicina reconhecidamente atua como ‘determinante’ de inúmeras enfermidades e danos à saúde. Com isso, subentende-se que a Medicina altamente tecnificada e a lucrativa indústria que a sustenta sempre agem para o bem e em prol da saúde de todos.
Ao contrário dos esforços de investigação empreendidos pela epidemiologia social das décadas de 1970 e 1980, os estudos atuais de determinantes sociais se limitam a identificar correlações entre variáveis sociais e eventos de morbimortalidade entre os diferentes grupos da população. Assim, o que está disfarçado por trás do rótulo de determinantes sociais e de combate às iniquidades em saúde é o triunfo esmagador da visão de mundo da epidemiologia tradicional.
Ao formular esse tipo de crítica, o Cebes se sente em perfeita sintonia com sua entidade irmã de âmbito latino-americano, a Alames, que anteriormente já apontara o fato incontestável de que esse aparentemente novo campo de investigação dos determinantes sociais fortalece a perspectiva positivista que predomina na epidemiologia tradicional. Manifestamos, assim, nosso regozijo de que colegas da Alames puderam contribuir conosco no seminário de Salvador e com artigos desta coletânea.
O que propomos, então, como perspectiva alternativa nessa questão? Desde logo, parece-nos recomendável abandonar de uma vez por todas a expressão ‘determinantes sociais’. Essa expressão conota inevitavelmente um preconceito cientificista, subentendendo-se que, para ser válido, o conhecimento dos fenômenos da saúde deve estar sempre fundado na explicitação de relações de causalidade em sentido estrito. Este é o modelo epistemológico da física newtoniana, que foi consagrado por Kant no século 18, mas que, posteriormente, veio a ser desmascarado e combatido pelas ciências humanas que surgiram com grande vitalidade no século 20.
De nossa parte, insistimos que a saúde é um fenômeno eminentemente humano e não um fato biológico-natural. Portanto, defendemos o ponto de vista de que o esforço de entender a determinação da saúde vai muito além do emprego de esquemas de causalidade e não deve ser confundido com uma associação empiricista entre condições de saúde e fatores sociais.
Por esse motivo, no lugar de determinantes, preferimos falar de ‘determinação’, termo que apresenta uma longa e respeitada tradição na filosofia. Segundo o dicionário Houaiss, determinação significa: “descrição das características; especificação”. Desde os tempos da escolástica medieval, ‘determinatio’ traduz o termo aristotélico ὁρισμός: “descrever os limites de algo, delimitar”. Esta é a raiz da palavra horizonte: aquilo que limita ao longe o que pode ser visto.
A atribuição de fatores causais a um dado fenômeno é apenas uma entre múltiplas maneiras possíveis de como um estudo científico ou filosófico pode determinar um dado fenômeno, no sentido de caracterizá-lo de maneira concreta. O processo de determinar um fenômeno social é sempre o resultado de um movimento do pensamento que apreende o real de modo concreto, como síntese de “múltiplas determinações”, como dizia Marx na sua crítica aos autores da tradição da economia política.
Entendemos que os estudos de determinação social da saúde devem envolver a caracterização da saúde e da doença mediante fenômenos que são próprios dos modos de convivência do homem, um ente que trabalha e desfruta da vida compartilhada com os outros, um ente político, na medida em que habita a pólis, como afirmava Aristóteles. Tal determinação pode ser de natureza inteiramente qualitativa, na medida em que procura caracterizar socialmente a saúde e a doença em sua complexidade histórica concreta. O sucesso desse tipo de investigação não depende necessariamente do uso de métodos estatísticos, mas da capacidade analítica de articular adequadamente uma multiplicidade de determinações que têm por base alguma teoria especificamente social da saúde e, portanto, que seja própria do homem. Parte desse esforço analítico em relação aos estudos de determinação social está dirigida justamente a retomar a contribuição do marxismo para entender fenômenos que são peculiares aos modos de trabalho e de vida da sociedade contemporânea. Mas aqui são ouvidas vozes de outros autores, tais como Heidegger, Bourdieu, Foucault, Beck e Agamben.
Queremos, por fim, concatenar trechos dos artigos da coletânea que, em conjunto, comprovam o que foi afirmado anteriormente: a tendência a recuperar criativamente o pensamento de Marx e, ao mesmo tempo, a buscar novas fontes de inspiração para interpretar facetas filosóficas e sociológicas pouco exploradas da determinação social da saúde.
Determinação Social da Saúde e Reforma Sanitária/ Roberto
Passos Nogueira (Organizador) – Rio de Janeiro: Cebes, 2010
200p. 18 x 25 cm
ISBN 978-85-88422-13-1
1. Determinação, 2. Saúde, 3. Reforma Sanitária, I. Nogueira, Roberto Passos.
Sumário
CAPÍTULO 1
A problemática teórica da determinação social da saúde
Naomar Almeida-Filho
CAPÍTULO 2
Determinação social da saúde e política
Paulo Fleury-Teixeira
Carla Bronzo
CAPÍTULO 3
El papel del trabajo en la determinación de las desigualdades en salud: Reflexión crítica sobre el Informe de la Comisión de Conocimiento sobre las Condiciones de Empleo de la Organización Mundial de la Salud (Employment Conditions Knowledge Network )
Silvia Tamez González
Catalina Eibenschutz Hartman
Iliana Camacho Cuapio
CAPÍTULO 4
Las tres ‘S’ de la determinación de la vida: 10 tesis hacia una visión crítica de la determinación social de la vida y la salud
Jaime Breilh
CAPÍTULO 5
Ordem social do trabalho
Madel T. Luz
CAPÍTULO 6
A determinação objetal da doença
Roberto Passos Nogueira
CAPÍTULO 7
Medicalização e determinação social dos transtornos mentais: a questão da indústria de medicamentos na produção de saber e políticas
Paulo Amarante
Eduardo Henrique Guimarães Torre
CAPÍTULO 8
Risco e hiperprevenção: o epidemiopoder e a promoção da saúde como prática biopolítica com formato religioso
Luis David Castiel
CAPÍTULO 9
Saúde e espaço social
Ligia Maria Vieira da Silva
NOGUEIRA, Roberto Passos (org.). Determinação social da saúde e reforma sanitária. [Rio de Janeiro]: Cebes, 2010. 200 p. (Coleção Pensar em Saúde). ISBN 978-85-88422-13-1. Disponível em: http://renastonline.ensp.fiocruz.br/recursos/determinacao-social-saude-reforma-sanitaria. Acesso em: 12 dez. 2017.
- 14288 leituras