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O Acidente e a Organização
Abas primárias
Esta obra nasceu da vontade do coletivo Chaos de elaborar e promover uma nova abordagem da segurança dos sistemas sociotécnicos que criam riscos, depois de ter constatado, de um lado, a estagnação e, por vezes, a regressão da segurança industrial na França, a ausência de debates abertos e contraditórios sobre esses temas, o fosso que não pode ser preenchido com as abordagens acadêmicas e universitárias e, por outro lado, as formas insatisfatórias de resolução dos problemas de segurança por engenheiros e tomadores de decisão. Nossa abordagem e nossa obra se inspiram em ideias fortes, que convém, logo de início, precisar.
Antes de mais nada, essa abordagem pragmática e realista testemunha nossa ligação com a segurança. Nossa obra, que se inscreve no quadro da gestão e da prevenção de riscos, traduz os desafios maiores da análise organizacional da segurança e enuncia os conceitos e os métodos a serem mobilizados para os colocar em relevo. Ela é também levada a apontar com o dedo as formas de reticência e de resistência sociais que esse modo de análise pode suscitar. Essas últimas segregam, tanto quanto sustentam, os caminhos sombrios e obscuros das falhas organizacionais.
Nessa hora de alerta ecológico global do planeta, o estudo da segurança de tal ou qual sistema específico encontra uma nova razão. Os acidentes, na abordagem organizacional, são a consequência de modos de funcionamento muitas vezes banalizados por organizações que aceitam fortes degradações da segurança. Analisar os acidentes em profundidade constitui a via real para compreender o funcionamento das organizações e repensar não a interrupção de toda produção industrial ou seu banimento para regiões longínquas do globo, mas os fundamentos de uma organização industrial mais segura, melhorando as condições de trabalho de todo o seu pessoal e preservando o meio ambiente.
A análise organizacional da segurança se apresenta, nesta obra, como uma abordagem intermediária entre os estudos universitários, muitas vezes especializados e dificilmente acessíveis aos engenheiros, e as abordagens desses últimos, quase sempre apressadas, de utilidade imediata, demasiado reducionistas para compreender a complexidade das falhas organizacionais. Longe de visar à produção de conhecimentos teóricos, longe de propor um prêt-à-porter metodológico, os defensores da análise organizacional da segurança se pretendem humildes, porque eles reconhecem esse projeto tão vertiginoso quanto apaixonante. Nossa abordagem pioneira, e talvez temerária, estabelece pontes entre saberes dispersos em áreas diferentes e métodos dos quais uma parte dos dados resulta de um material particular, pouco banal para os engenheiros de sistemas complexos: a palavra dos atores.
A obra se dirige evidentemente a todas as pessoas que trabalham nos ambientes industriais de risco e às pessoas interessadas pelos riscos e perigos no espaço público. Em razão da emergência, na França, da preocupação do público por setores de atividade não industriais, especialmente a saúde, a obra pode interessar também ao mundo médico. Experts mais próximos da esfera política, assim como os acadêmicos, podem igualmente encontrar nela matéria para reflexão. Aliás, acreditamos que a análise organizacional tem, sem dúvida, um forte potencial de utilização em muitas outras áreas,sobretudo aquelas da disponibilidade dos sistemas técnicos e na dos riscos profissionais, na prevenção de acidentes do trabalho.
Faltam-nos ainda experiências nesses campos, ou elas custam a consolidar-se. Mas a obra vai dar matéria para a reflexão de pessoas interessadas por essas áreas de atividade.
Os acidentes estão no centro da nossa obra porque eles são reveladores poderosos das disfunções organizacionais, motores poderosos de reflexão dado que eles questionam nossa capacidade de análise e de diagnóstico. Os acidentes são, finalmente, “semeadores de inquietações” porque eles desestabilizam nossas representações sobre a segurança e a prevenção. Entre essas inquietações, pensamos sobretudo no lugar do erro humano na análise dos acidentes. Esse conceito, que progressivamente se tornou um dogma, pesa sobre o futuro da segurança. A análise organizacional da segurança, para se desenvolver, deve, de início, abandonar esse quadro ideológico. É essa, aliás, toda a ironia, todo o drama e o futuro da análise organizacional da segurança.
Para existir, ela deve acabar com um dos seus conceitos geradores: o erro humano. Porque na França, no ambiente dos engenheiros e dos executivos e, sem dúvida, de forma mais geral no ambiente público, a explicação mais frequente para os acidentes e incidentes industriais, graves ou rotineiros, é o erro humano, a falha dos agentes de campo, o comportamento dos empregados no final da cadeia organizacional. De preferência à dos indivíduos, a análise das organizações que trazem riscos industriais é muito negligenciada. Ora, sem dúvida alguma, essa é uma das novas e raras perspectivas oferecidas atualmente no mundo industrial para enfrentar o desafio não somente dos riscos maiores de acidentes, mas também o desafio ecológico. Para isso seria necessário desenvolver um outro tipo de análise, com sua problemática, seus conceitos, suas referências, seus conhecimentos, seus métodos e suas trocas de savoir-faire: a análise organizacional da segurança.
Sempre em meio a essas inquietações, defendemos a ideia de que nenhum diagnóstico organizacional de segurança pode ser elaborado sem pensar continuamente nas lições dos acidentes industriais. Essas lições não são mobilizadas somente para alertar sobre os riscos maiores, mas também para perceber o murmúrio, o cochicho das falhas em curso, antes que essas provoquem catástrofes. Assim, a especificidade da análise organizacional da segurança se situa no lugar predominante atribuído aos retornos da experiência que resultam dos acidentes. Esses conhecimentos de fundo intervêm em todas as fases de elaboração do diagnóstico. A obra reintroduz a dimensão histórica na gestão dos riscos e lembra que, sem o conhecimento do passado, o futuro é cego. Assim fazendo, a cultura de segurança dos analistas internos e externos às organizações, dos gerentes e engenheiros, nos parece lacunar, dada a sua ausência de referência a uma forma de cultura de acidentes ou pelo fato de que as lições aprendidas dos acidentes não tenham sido profundamente integradas a essa cultura de segurança.
Enfim, esta obra semeia um último problema. Aquele da responsabilidade moral dos experts e dos empresários. A análise organizacional da segurança é, de fato, sempre levada a voltar àqueles que detêm as chaves da organização e os poderes de decisão em matéria de segurança. Como poderia ser de outra maneira?
Nós não podemos encerrar este prefácio sem expressar nosso profundo reconhecimento às Edições Préventique e seu diretor, Hubert Seillan. Nós lhes somos devedores pelo apoio a nosso esforço de reflexão sobre a análise da segurança das organizações a partir de acidentes industriais e por permitir a promoção de nossa abordagem.
Mas isso não deve espantar o leitor, tão grande é o interesse que o editor manifestou por esses domínios, e isso há muitos anos.
Llory, Michel
L792 O acidente e a organização/Michel Llory e René Montmayeul;
Tradução de Marlene Machado Zica Vianna
Belo Horizonte: Fabrefactum, 2014.
192p. (Série: Confiabilidade Humana)
Título original: L’accidente et l’organisation
ISBN: 978-85-63299-16-1
1. Acidente industrial – Análises. 2. Segurança industrial, I. Montmayeul, René. II. Título.
CDD: 614.8
CDU: 363.11
LLORY, Michel; MONTMAYEUT, René. O acidente e a organização. Tradução: Marlene Machado Zica Vianna. Belo Horizonte, MG: Fabrefactum Editora, 2014. 194 p. (Série: Confiabilidade Humana). ISBN 978-85-632991-6-1. Título original: L'accident et l'organisation. Disponível em: http://renastonline.ensp.fiocruz.br/recursos/acidente-organizacao. Acesso em: 26 nov. 2018.
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